Uma das belas figuras que a mitologia hindu nos oferece é a de Náráyana.  Náráyana é Vishnu adormecido, repousando sobre o oceano de leite.  Ele flutua nesse oceano deitado sobre a serpente Anantashesha que com seu corpo cria um colchão para o Senhor Náráyana e com suas várias cabeças, um guarda-sol para protegê-lo.  A bela deusa Lakshmi massageia os pés de seu adorado esposo para que ele repouse profundamente. 

Dizem que Vishnu, na forma de Náráyana, está sonhando e que seu sonho é o mundo manifestado.  Assim, ele cria o universo a partir de seu estado de sonho.  A criação é o sonho de Vishnu-Náráyana. 

Assim como Náráyana, o ser humano é dotado da capacidade de criar.  Chamamos essa capacidade de criatividade.  Embora usemos esse termo com frequência nem sempre temos uma idéia clara de seu significado e implicações.  Criatividade é a capacidade de olhar uma situação por um ponto de vista incomum.  Tendemos a olhar um problema ou uma dificuldade por um único ângulo e nos sentimos sem opções para resolvê-lo.  Uma pessoa criativa é capaz de ver a mesma dificuldade por vários ângulos ou de uma perspectiva não convencional.  Isso lhe dá a oportunidade de avaliar melhor suas opções e de trazer à tona uma solução original e útil. 

A originalidade é o resultado da criatividade.  Quando pensamos no universo à nossa volta, com tanta diversidade de formas, cores e conceitos, nos maravilhamos com a originalidade de Náráyana ou da natureza criadora.  Como será que a inteligência que criou tudo isso teve tanta inspiração para, a partir do ponto zero, gerar tanta diversidade?  Criar a partir do zero, baseado em nada pré-existente, é ser original.

A criatividade nossa de cada dia

Diariamente nos deparamos com situações que exigem nossa criatividade: pensar num caminho novo para fugir do trânsito, criar uma nova maneira de fazer o mesmo trabalho que já fazemos ou um jeito novo de mostrar que amamos a pessoa com quem nos relacionamos.  Parece que não, mas somos extremamente criativos, mesmo nas pequenas coisas.  Mas quando nossa criatividade diminui, a vida se torna entediante e chata.

Quando os desafios que enfrentamos são muito menores do que nossa criatividade, nos sentimos sem estímulo.  Parece que temos um carro 4×4, mas só precisamos dele para ir até a padaria da esquina.  Não conseguimos manifestar nosso potencial criativo em toda sua força.  Se essa situação se prolonga, a criatividade vai ficando enferrujada por falta de uso.  Então, viva os desafios!

No outro extremo, quando os desafios nos parecem muito maiores do que nossa capacidade de vencê-los, geramos ansiedade.  A ansiedade é um dos maiores fatores que diminuem nossa criatividade.  A obrigação de gerar um bom resultado ou de ter um bom desempenho, além daquilo que nos achamos capazes, gera tensão e paralisa nossa criatividade.  Todos nós já experimentamos a sensação de branco na hora de escrever um texto ou fazer uma prova.  Sentimos-nos paralisados e parece que aquele vazio vai durar eternamente.

Entre o tédio e a ansiedade está nosso potencial criativo.  Quando os desafios que enfrentamos estão no mesmo nível de nossa capacidade de resolvê-los, nossa criatividade é ativada.  Sentimo-nos estimulados a vencê-los, pois sabemos que eles resultarão em algo bom e útil.  Experimentamos uma sensação geral de bem-estar e de autoconfiança.  É quando surgimos com soluções inovadoras, criativas e, muitas vezes, inesperadas.  Esse é o estado de fluxo criativo que tanto almejamos.  Quando estamos nesse estado de fluxo criativo, o esforço para realizar a tarefa não é grande e nem nos sentimos desgastados ao final.  As ideias fluem, as soluções surgem como num passe de mágica e nos sentimos estimulados e energizados.

Yoga para ser criativo

Náráyana cria o mundo num estado de sonho.  Ele não está em pé ou sentado atrás de uma mesa criando o universo.  Está deitado e relaxado com Lakshmi massageando seus pés.  O universo emana de seus sonhos, sem esforço.  Assim, essa imagem nos dá a dica do que precisamos para ser criativos: relaxar.

A tensão e a pressão são as grandes inimigas do fluxo criativo.  O medo de falhar gera a ansiedade e esta destrói a criatividade.  A própria capacidade de compreensão fica tolhida quando estamos tensos.  Lembro de uma situação em que eu tinha que dar uma aula sobre a filosofia Samkhya mas não conseguia compreender inteiramente a criação do universo proposta por essa linha.  Passei o dia estudando.  Não cabiam mais livros em minha mesa e eu lia um pouco de cada um buscando o fio da meada que me faltava.  Depois de muito tempo sem ter sucesso, fechei os livros e decidi que não daria aquela aula, pois não tinha o conhecimento suficiente.  E fui dormir.  Na manhã seguinte, naquele estado em que não estamos nem acordados e nem dormindo, eu compreendi tudo.  Na minha tela mental, era como se as peças do quebra-cabeça se movessem sozinhas e se encaixassem sem esforço.  A resposta veio naquele momento em que eu estava relaxado.  Ter desistido de dar a aula retirou a pressão da minha mente e deixou espaço para o entendimento.   Foi uma das aulas mais fantásticas que já dei.

O Yoga tem inúmeras ferramentas para nos ajudar a eliminar a tensão e a ansiedade.  A prática dos ásanas elimina as tensões físicas e ajuda a manter o prana (energia) fluindo.  Esse é o primeiro passo para a descontração.  Prefira as posições de alongamento, sem muito esforço.  Quando praticamos de forma mais descontraída, sem gerar tensão para manter o alinhamento e a postura, sobra espaço para desfrutarmos do ásana e entrar em contato com nossas sensações.  O ásana não tem a ver só com músculos, ossos e articulações.  As posições do Yoga trazem à tona toda uma gama de sensações, emoções e de percepção da energia que nos colocam em contato com nosso mundo interior.  E esse rico mundo interior, repleto de símbolos e imagens, é uma das melhores fontes de inspiração.  E ele está dentro de nós.

As técnicas de respiração, os pránáyámas, também têm um papel importante.  Esses exercícios nos ajudam a combater a ansiedade, trazer clareza ao raciocínio e estimular o cérebro.  O bhramari pránáyáma, a respiração em que imitamos o som da abelha é uma ótima opção para acalmar as ondas mentais e prevenir a ansiedade.  Ele pode ser feito antes de dormir para melhorar a qualidade do sono. E nada como uma boa noite de sono para trazer à tona nossa criatividade.  Mas a mais importante técnica é o nadi shodhana pránáyáma, a respiração alternada.  Essa respiração equilibra o fluxo do prana, a bioenergia e como consequência, sincroniza os hemisférios cerebrais fazendo com que o cérebro funcione como uma unidade, sem predominância do lado intuitivo ou do racional.  Quando o hemisfério esquerdo, responsável pelo pensamento lógico, prático e objetivo, está no comando não há muito espaço para a criatividade.  Se o hemisfério direito, que está associado ao pensamento intuitivo, subjetivo e emotivo é predominante, tendemos a viajar na subjetividade e nos infinitos caminhos da mente.  Tornamo-nos criativos, mas carecemos de um senso prático para materializar nossas idéias.  Mas existem momentos em que ambos os hemisférios trabalham em harmonia.  A lógica apóia a subjetividade, a praticidade se une à intuição e nosso cérebro atua como uma unidade bem integrada.  É nesse estado que a criatividade se manifesta com soluções práticas.  O nadi shodhana é a prática fundamental para desenvolver a integração dos hemisférios opostos.  Fico me perguntando se foi por causa dessa prática que os grandes yogues se tornaram tão sensíveis e criativos.  A quantidade de inovações e a compreensão da mente humana que recebemos desses mestres não foram superadas até hoje.

Despertando o potencial criativo com a Yoga Nidra

A imagem de Náráyana deitado na serpente é também, o símbolo da Yoga Nidra, a técnica de descontração ensinada por Paramahamsa Satyananda Saraswati, da Bihar School of Yoga.  Na verdade, Yoga Nidra é muito mais do que relaxamento e concentração.  É uma prática de pratyahára e dhárana.  O pratyahára é a abstração dos sentidos, a quinta etapa do Yoga de Patáñjali.  Os textos citam o pratyahára como sendo a capacidade de internalizar os sentidos, trazê-los para dentro, mas não dizem muito sobre como fazer isso.  Porém, para alcançar a concentração (dhárana), a meditação (dhyána) e a própria iluminação (samadhi), temos que dominar a introspecção dos sentidos.  Essa técnica só se tornou clara para o ocidente quando, nos anos 60, Paramahamsa Satyananda, adaptou antigos rituais tântricos para que se tornassem compreensíveis e pudessem ser praticados pelo homem moderno.  Foi o nascimento da Yoga Nidra.

Yoga Nidra significa o Yoga do sono.  Os yogues são pessoas que fazem tudo de uma maneira diferente das pessoas comuns. A Yoga Nidra é a maneira como os yogues dormem e descansam.  Na técnica desenvolvida por Paramahamsa Satyananda, os sentidos são aquietados e trazidos para dentro.  O praticante entra num estado em que não está nem exatamente dormindo, nem exatamente acordado.  É um estado semelhante àquele que entramos toda noite, quando nos deitamos, relaxamos, mas ainda não adormecemos.  Também experimentamos esse estado pela manhã, quando estamos perto de acordar: estamos medianamente conscientes, medianamente despertos.  Nesse estado, a mente se torna receptiva, pois relaxamos todos os freios morais e sociais.  Quando não temos as convenções sociais e as limitações impostas pela educação, a mente se manifesta com toda sua criatividade.  É por isso que temos insights criativos quando acordamos pela manhã, quando estamos passeando pela natureza ou quando não estamos nem pensando naquele problema que temos que resolver.  A diferença entre a Yoga Nidra e os momentos em que temos esses insights é que essa técnica nos coloca no estado criativo de maneira consciente e deliberada.

A Yoga Nidra também alimenta a mente nas suas dimensões subconsciente e inconsciente com imagens, símbolos e sensações que nos ajudam a diminuir a pressão dos conteúdos internos que, em última análise, são os que direcionam nossas escolhas.  Diminuir essa pressão nos torna mais saudáveis física e mentalmente, nos ajuda a tomar decisões mais acertadas e abre espaço para as manifestações criativas. 

Atualmente, já temos comprovação científica do quanto a Yoga Nidra pode auxiliar na criatividade.  Uma experiência científica foi conduzida em uma escola na Índia, onde um grupo de crianças entre 10 e 12 anos, foi submetido a sessões diárias de Yoga Nidra durante um mês enquanto outro grupo participava das aulas regulares de educação física.  Testes de  criatividade foram aplicados em ambos os grupos antes e após a experiência.  O nível de criatividade antes da pesquisa era praticamente o mesmo nos dois grupos.  Mas após um mês tendo sessões de Yoga Nidra, as crianças apresentaram níveis de criatividade bem maiores do que as que não participaram dessa prática.  Assim, confirmamos que a criatividade está relacionada com o relaxamento.

Mantenha a criatividade em forma:

  • Cuide dos estímulos que sua mente recebe.  Filmes e livros que criam tensão diminuem a criatividade.  Aqueles com boas histórias e roteiros diversificados, estimulam-na.
  • Esteja em contato com a natureza.  Mudar de paisagem diminui a pressão e as cobranças internas e abre as portas da criatividade.  Isso vale até para uma simples caminhada no parque.
  • Pratique Yoga Nidra diariamente para eliminar a tensão, fazer uma faxina na mente e alimentá-la com imagens e estímulos positivos.
  • As técnicas de meditação são bem vindas, pois nos colocam em contato com nosso mundo interior.
  • Quando precisar ser criativo, use informações de outras áreas de conhecimento.  Um livro que lemos ou um hobby que praticamos podem ser o gatilho da criatividade.  Por exemplo, uma estratégia que usamos num jogo de futebol pode ser transformada numa estratégia para solucionar uma situação no trabalho.
  • Planeje, organize-se e procure fazer seu melhor, mas deixe espaço para a sabedoria do universo interagir.  Mantenha-se relaxado, confiante e esteja atento às sincronicidades ou acontecimentos incomuns.  Essa é a maneira que o universo interage conosco.
  • Saia da rotina, converse com pessoas diferentes, coloque-se em situações não usuais.  Fazer sempre as mesmas coisas e conviver com as mesmas pessoas nos leva ao tédio e embota a criatividade.

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